29 dezembro 2005

Ana Gama - Narciso ou a Estratégia do Vazio

Narciso ou a Estratégia do Vazio

“Narciso ou a estratégia do Vazio” é o título da série de objectos-pintura desenvolvidos por Ana Gama, uma jovem artista de Coimbra, nos últimos dois anos. A artista participa actualmente na colectiva "Arquitectura e Paisagesm" patente na Galeria Sete (Coimbra) e foi vencedora do primeiro prémio de Pintura da Galeria Santa Clara (Coimbra) no passado mês de Novembro.














Ana Gama - Narciso ou a estratégia do Vazio

“Narciso ou a estratégia do Vazio” é também o título do III Capítulo da “Era do Vazio. Ensaio sobre o individualismo contemporâneo” do filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky. Parafraseando o autor, Narciso surge aos olhos de um relevante número de investigadores como símbolo dum presente que instaurou um novo estádio do individualismo. “O narcisismo designa então a emergência de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o seu corpo, com outrem, com o mundo e com o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário dá a vez a um capitalismo hedonista e permissivo[1]”.O percurso traçado por Lipovetsky, nesta obra exemplar, não é nada mais do que o da autonomia do indivíduo pós-moderno em cisão com a tradição e com as suas estruturas reguladoras. A relação entre esta tese e os conceitos desenvolvidos por Ana Gama no seu projecto é óbvia. No meu texto sobre a exposição Arquitectura e Paisagem na Galeria Sete, reflectindo sobre os seus objectos, fiz alusão à criação de um espaço-outro proporcionado pelo jogo óptico dos espelhos existentes nas estruturas de alguns dos objectos. Este espaço-outro corresponde a um vazio, que ao contrário do vaticinado por Lipovetsky, onde predomina um sentimento desesperativo, o mesmo que é expresso por Paul Virilio, é gerador, iniciático, proporcionador de esperança construtiva e não de declínio, definhamento ou morte como acabou por suceder com Narciso.














Ana Gama - Narciso ou a estratégia do Vazio

A salientar essa positividade, o carácter sereno das formas, a ausência de arestas vivas, as formas elípticas, as linhas ascendentes e as tonalidades suaves. A este espaço-outro acede-se, como foi referido, numa atitude voyeurista, através de aberturas existentes nas zonas centrais das peças. Espécie de matrix, que se pode ou não vislumbrar.










Ana Gama - Narciso ou a estratégia do Vazio

Esta relação entre o espelho e o reflexo de quem o observa, entre a realidade palpável e a virtual - a que se deseja ver - remete o observador para o mito de Narciso, o mesmo que centrado em si mesmo, mergulha numa indiferença perante tudo e todos em virtude do excesso de estímulos criados pela sociedade. O resultado poderá ser o aniquilamento da personalidade em nome duma “imaglogia”[2], mas para Ana Gama o espelho, que também se revela na simetria das formas e na sua repetição geométrica surge como uma forma de abertura e não de enclausuramento dos processos de personalização e narcisismo. Esta é a proposta feita pela a artista para que se consiga sobreviver num mundo de aparências. Apaixonado pelo espelho Narciso procurou descobrir a sua própria imagem nos outros, auto-condenando-se à insatisfação perpétua. Dorian Gray é uma boa metáfora para o determinismo que encerra esta atitude.











Ana Gama - Narciso ou a estratégia do Vazio

De modo distinto, ao espectador que se revê nos espelhos de Ana Gama, resta uma postura não individualista mas multiplicadora, aberta e indiferente. Os objectos-pintura de Ana Gama materializam o desejo de contrariar criticamente essa tendência narcísica, mostrando-se enquanto estruturas abertas e não encerradas sobre si mesmas.

[1] LIPOVETSKY, Gilles – A Era do Vazio. Ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio D´Água, 1989, p. 48.
[2] Conceito criado por Milan Kundera. Pretende “significar a combinação numa palavra daquilo que têm tantos nomes: agências de publicidade, consultores de imagem para estadistas, desenhistas encarregados de projectar as formas dos carros e aparelhos de ginástica, modistas, cabeleireiros e estrelas do mundo do espectáculo, que ditam as normas de beleza física para aqueles que respeitam todos os ramos de `imagologia’.” In Insustentável Leveza do Ser. Lisboa: Dom Quixote. [1988].

25 dezembro 2005

O VERBO é dos Artistas / Manuela São Simão

Foram vários os pedidos para que «da direita para a esquerda» o espaço reservado aos Artistas passasse a demonstrar o peso que realmente merece. Por isso decidi proceder a essa reestruturação. Espero que seja do agrado de todos. A minha primeira convidada é Manuela São Simão. Aqui fica a referências às suas duas últimas exposições e o CV.


1.

"Fronteiras e Enquadramentos"

«Todos nós temos fronteiras: físicas e psicológicas. A nossa acção/intervenção na natureza é limitada enquanto o espaço ou "território" onde intervimos é infinito. Não sabemos onde termina a linha do horizonte, mas sabemos exactamente onde termina uma fronteira feita pelo Homem. Intervimos na natureza definindo regras e percursos. O meu trabalho é sobre essas regras e percursos que encontramos nos mapas e que eu sintetizo na ideia de limite físico/territorial, onde a cor, elemento de "demarcação", vem destacar os percursos fictícios e assumir os limites físicos do próprio suporte da pintura, enquadrando-a.»

Manuela São Simão






2. BOUNDARIES_Espaço-Caixa
Pintura/Instalação e project-room de Manuela São Simão


«A palavra "Boundary" possui um duplo sentido para a ideia de fronteira/limite, que no meu trabalho tem também um duplo sentido: um limite que corresponde a uma fronteira física (territorial) e, ao mesmo tempo, um limite ou "horizonte" psicológico, que projecta para o domínio das limitações humanas psicológicas. "Boundaries", ou a questão dos limites, da relação inevitável entre dois tipos de limites/limitações, estando um dentro do outro: um limite – forma mais complexo que coabita com um limite – espaço que, apesar do aparente carácter mais estático, assume a importância de "controlador" e definidor (Espaço - Caixa). As formas são territórios fechados, cidades que não podem evoluir porque se encontram encerradas em caixas, no escuro, arrecadadas e rotuladas, esquecidas numa permanente estagnação onde os tabus e os "pré-conceitos" impedem qualquer evolução e abertura.»

Manuela São Simão

Esteve patente:

Velha-a-Branca_Estaleiro Cultural
de 4 de Novembro a 11 de Dezembro
Lg. da Senhora-a-Branca, 23 Braga
Tel/Fax. 253 618 234
E-mail:
info@velha-a-branca.net
www.velha-a-Branca.net



3.
CV
MANUELA SÃO SIMÃO nasceu em São Paulo (Brasil) em 1980, vindo cinco anos depois para Portugal, onde concluiu, em 2003, a licenciatura em Artes Plásticas_Pintura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Vive e trabalha no Porto.
2005:
- Curso de Fotografia Digital no Instituto Português de Fotografia e curso de iniciação à fotografia no IPJ;
- Cursos técnicos de design gráfico e Web Design e Multimédia; 2003:
- Workshop na área da Performance dirigido pela artista plástica e cenógrafa Nádia Lauro, no âmbito do Projecto/Instalação “As Atletas.Porto.2003”, Auditório Serralves;
- Participação nas duas Performances intituladas “Sound Stimulator”, que tiveram lugar no campo de ténis de Serralves;- Curso de Iniciação ao Cinema de Animação Sonoro e Workshop de Desenhos Animados, orientados por Abi Feijó na Casa da Animação, Porto.
2002:
- Bolseira do Programa Sócrates/ Erasmus na National Academy of Art, Sofia_Bulgária;- Litografia _ frequência na National Academy of Art - Sofia _ Bulgária;
- Colaboração com pintura mural na redecoração do espaço cultural – “As Bruxas” em Sófia.
2001:
- Serigrafia e Gravura _ frequência na Faculdade de Belas - Artes da U.P.;
Exposições (resumo)
2005:
- Exposição Individual intitulada “Boundaries_Espaço-Caixa” na Velha-a-Branca_Estaleiro Cultural, Braga;- Exposição Individual intitulada “Fronteiras e Enquadramentos” nas galerias do Labirintho – Bar, Porto;
- Exposições Colectivas da “VIII Edição do Prémio de Pintura Fidelidade” nas instalações da Culturgest de Lisboa e do Porto e na Fundação da Juventude do Porto;
- Exp. Colectiva de pintura na Galeria Corrente de Arte, Lisboa;
2004:
- Exp. de serigrafia e pintura intitulada “Fronteiras e Formas”, no Espaço Cultural/Cabeleireiro_Remy, Braga;
- Exp. Colectiva de pintura na Culturgest de Lisboa no âmbito do 8º Prémio de Pintura_Fidelidade Mundial.
- Exp. Colectiva das obras seleccionadas para o “Concurso de Pintura e Escultura D. Fernando II”, promovido pela Câmara Municipal de Sintra, Espaço Cultural Casal de S. Domingos.
2003:
- Realização de um “project-room” com luz negra intitulado “Boundaries (Destaques) ”, “Por Amor à Arte_Galeria”, Porto;
- Exp. colectiva de Desenho intitulada “Projecções”, no “lugar do Desenho”, Fundação Júlio Resende;
- Exp. Colectiva dos Alunos Erasmus, Museu da Faculdade de Belas-Artes da U.P.
2002:
- Exposições Colectivas da “VII Edição do Prémio de Pintura Fidelidade” nas instalações da Culturgest de Lisboa e do Porto e na Fundação da Juventude do Porto e Abrantes.
Prémios
2004:
- 2º Prémio de Pintura na “VIII edição do Prémio Jovens Pintores”_ Fidelidade/Mundial;- 2º Prémio de Pintura no “Concurso Jovens Criadores de Aveiro_04”.
2003:
- 2º Prémio na VII edição do “Prémio de Pintura João Barata”, promovido pelas Livrarias Barata, Lisboa;- 3º Prémio de Ilustração no “Concurso de Postais de Natal”, promovido pelo IPJ Porto.

23 dezembro 2005

Arquitectura e Paisagem na Galeria Sete

A exposição Arquitectura & Paisagens patente na Galeria Sete em Coimbra apresenta mais uma vez uma exposição colectiva, desta vez reunindo doze artistas cujos projectos exploram a dicotomia entre o natural e o artificial. Numa abordagem generalista, os diferentes referentes podem ser associados de forma imediata ao universo arquitectónico ou a elementos paisagísticos. Aliás, é a própria nomenclatura da exposição que o confirma. No entanto, em determinadas situações o espectador vê-se perante um logro ficcionado pelo artista. Esta experiência pode ser percepcionada nos projectos de Gabriela Albergaria ou Samuel Rama em que a ficção se assume num universo ecologista.








Gabriela Albergaria - Tempo/Weather. 2005. Prova Lambda 22x90 cm (triptico) (ed. 1/3+PA)










Samuel Rama - S/título. 2003. Prova ilfochrome polyester 26,5x39 cm (ed. 2/5+PA)

As maquetas construídas com pormenores de realidade são fotografadas e ampliadas de tal modo que sugestionam paisagens naturais e mesmo reais, no caso das fotografias de Albergaria, e de construções de casarios rurais no caso de Rama. Os próprios desenhos de Albergaria estruturam a progressão hipotética de um ciclone e os seus efeitos na natureza.

Nas pinturas de Pedro Falcão o espectador é confrontado com um ambiente arquitectónico, formalmente minimalista. Uma observação mais atenta conduz ao reconhecimento da existência de pormenores construtivos que o autor identifica com letras do alfabeto. Neste caso, os títulos das obras podem ajudar a fazer a ponte. Letterscape – Paisagem de Letras (da série KBT) é um bom exemplo. O carácter formal e o modo como se sobrepõem e interceptam as letras pintadas numa mesma cor sobre o que aparenta ser uma linha de horizonte insinua esse mesmo engano. Mas outras questões podem ser colocadas, algumas também comuns aos projectos já referidos. É o caso da ilusão de escala ou simplesmente a crítica à intervenção do Homem sobre o meio físico.










Pedro Falcão - Letterscape 2 (da série KBT). 2005 tinta de água s/ madeira 75x200 cm












Pedro Falcão - MW (da série KBT). 2004. tinta de água s/ MDF 123x163 cm.

No primeiro caso, inserem-se as pinturas-objecto de Ana Gama que através de um jogo óptico de espelhos criam uma noção de profundidade espacial de contornos psicadélicos. A este espaço-outro acede-se, numa atitude voyeurista, através de aberturas existentes nas zonas centrais das peças. Os objectos de Pedro Valdez Cardoso, vencedor do Prémio City Desk em 2005, revelam sobretudo preocupações de carácter ecopolíticas. A hipotética qualidade do transgénico e o seu questionamento poderão constituir uma hipótese de leitura de peças como Building Nature de 2005.










Ana Gama - Narciso ou estratégia do vazio. 2002. Acrílico s/ MDF e alumínio 140x210 cm.









Ana Gama - Narciso ou estratégia do vazio. 2003. estrutura de alumínio e vidro 100x170 cm.











Pormenor Narciso ou estratégia do vazio. 2003.











Pormenor Narciso ou estratégia do vazio. 2003.














Pedro Valdez Cardoso - S/título (baldio). 2005. técnica mista 200x70x70.











Pedro Valdez Cardoso - Building Nature. 2005. Técnica mista 56x73x52 cm.

Com uma intenção distinta, a problematização do planeamento arquitectónico mantêm-se noutros projectos. A estruturação e a delimitação de fronteiras constituem o âmago dos mais recentes objectos de João Galrão. Território 2 revela precisamente essa inquietação. Utilizando madeira, PVC e esferovite armado foi criada uma plataforma de simulação micro-arquitectónica que não pode deixar de ser associada a uma visão topográfica.








João Galrão
S/título. 2005.
Floreira metálica c/ escuet de esferovite armado
194x47 cm (diâmetro)








João Galrão
S/título (da série Contratempo). 2005.
madeira c/ ligadura de gesso e massa mineral
93,5x44x33 cm





João Galrão
Território, 2, 2005.
madeira, PVC e esferovite armado
60x60x12cm



Esta visualidade está também presente nas paisagens fantásticas criadas por António Melo num imaginário próximo de Lewis Caroll. Verdadeiras janelas por onde se pode perscrutar um mundo-outro, onde domina o mesmo verde terroso dos desenhos de Albergaria.














António Melo - S/título. 2004 óleo s/ tela 100x81 cm.

Se em vários projectos, já analisados, são perceptíveis noções de espaço-outro, em Boring Postcards # 2 de Luís Palma é o conceito de não-lugar de Marc Augé que se descobre na fotografia de um terminal rodoviário de Veneza. Um não-lugar é um espaço de trânsito, de mediação entre origens e destinos.







José Maças de Carvalho - Chewing me. 2005 Provas Lambda 37,5x150 cm (tríptico) (ed. 1/3+PA).

Esta imagem tripartida pode ser transferida em termos figurativos para a relação entre emissor, mensagem e receptor que estrutura o vídeo Chewing me de José Maças de Carvalho. A estratégia de duplicação, presente em muitos dos seus vídeos, neste caso de uma mesma personagem feminina que mastiga infantilmente uma pastilha elástica, é impugnada lentamente pela percepção de que os movimentos que expressa não são simultâneos. O que existe é apenas uma simetria desfasada no tempo.

Fluidos Corporais e Arte Contemporânea

O Prémio EDP Novos Artistas vai na sua 6ª edição. Foram sete os artistas seleccionados este ano para apresentarem os seus projectos no Pavilhão Centro de Portugal em Coimbra: Eduardo Petersen, Francisco Vidal, Vasco Costa, Jorge Feijão, José Carlos Teixeira, Ramiro Guerreiro e João Leonardo. Nesta Crónica o meu destaque vai para o vídeo «The Hair of the Dog» deste último artista.

A estratégia de choque ou a objectivação do corpo enquanto mecanismo mediador entre o que é ingerido e depois expelido e reintroduzido resume em poucas palavras a orgânica usada pelo artista para provocar uma reacção que pode ser de abominação ou repugnância no caso dos espectadores mais sensíveis. O facto de João Leonardo beber uma cerveja, urinar depois no mesmo copo para a beber de seguida com a mesma satisfação que caracterizou o primeiro acto, não é nada mais do que uma alegoria performatizada.














Herman Nitsh- Acciones. 1984.











Robert Mapplethorpe - Jim and Tom. 1977.

Muitos artistas nas últimas décadas têm provocado escândalo graças à utilização do corpo e de fluidos corporais de uma forma não convencionada pela sociedade. Posso citar, a título de exemplo, a ex-prostituta e hoje artista-performer Orlan que se redesenha obsessivamente mediante a cirurgia plástica; Herman Nitsch, fundador do teatro do Mistério das Orgias, que promete a catarse mediante uma encenação de música, pintura, derramamento de sangue e entranhas de animais ou ainda, e mais polémico, Ron Athey, artista seropositivo que numa das suas actuações fez um corte a outro intérprete em palco e lançou sobre o público folhas de papel empapadas em sangue, provocando o terror total. Mais próximos da acção de João Leonardo, a «Virgem Maria» de Chris Ofili exposta em 1999 na célebre exposição Sensation executada com excrementos de elefante, o «Piss Christ» de Andrés Serrano de 1987, ou «Jim and Tom» de Robert Mapplethorpe (1977), o primeiro, uma fotografia da Crucificação de Cristo em cuja produção foi usada urina e o segundo, outra fotografia mostrando um homem urinando na boca de outro.














Andrés Serrano - Piss Christ. 1987.














Chris Ofili - The Holy Virgin Mary. 1996.

O acto encenado por João Leonardo não é de carácter religioso na verdadeira acepção da palavra mas acaba por sê-lo quando faz uso de ritos sociais e urbanos característicos da sociedade actual acrescentando-lhes um valor simbólico mediante o uso de um gesto que é sublinhado pelo próprio título do vídeo e ao qual não posso deixar de atribuir também uma intenção sarcástica e de gozo. A expressão idiomática "The hair of the dog» está associada ao acto de beber bebidas alcoólicas em excesso. Acredita-se que para curar a ressaca do dia anterior bastará beber um ou dois copos da mesma bebida. Este «Bebe o que bebeste» é ao mesmo tempo ironia, jogo e ritual. Todos os participantes deste cerimonial conhecem as regras do jogo e se há escândalo é porque não se domina nem compartilha a mesma crença.

O que este vídeo ilustra alegoricamente é a fronteira entre uma grelha de valores aceitáveis e não aceitáveis tendo por pano de fundo a tradição cultural ocidental. Tratando-se de uma questão axiológica, o sentido da imagem não está na imagem em si mas na relação que o espectador poderá estabelecer com ela. E nestas circunstâncias, o choque ou o escândalo pode existir ou não.

Arte, Ciência e Tecnologia. II Parte

As obras expostas no Museu da Ciência e da Técnica compreendem diversos meios de expressão: pintura, instalação, desenho, fotografia e vídeo. O que as une é a reflexão que, de diferentes modos, cada autor estabeleceu com as questões da ciência e da tecnologia. Destaco apenas os projectos que considero mais interessantes do ponto de vista desta relação.











Marta de Menezes - Árvore do Conhecimento, 2004-2005
Cultura de neurónios vivos. Dimensões variáveis.


Marta de Menezes, formada em Artes Plásticas pela FBAUL trabalha desde 1998 na área da Bio Art. «Tree of Knowledge» é o nome do projecto agora apresentado, realizado na Symbiotica, laboratório dedicado à exploração artística do conhecimento científico e às tecnologias biológicas da Escola de Anatomia e Biologia Humana da University of Western Austrália, que consistiu na criação de esculturas com neurónios vivos. Segundo a artista a escolha do material a usar numa escultura determina o modo como a percepcionamos. Neste projecto, quando se questionou sobre esse processo, decidiu que os materiais mais adequados para representar a estrutura tridimensional dos neurónios seriam os próprios neurónios. Diz a artistas que «Ao cobrir uma estrutura de suporte com neurónios vivos, ou ao preencher tubos de vidro com estas células, torna-se possível obter uma representação da [sua] delicada estrutura […], mantendo a sua natureza dinâmica: sempre mudando, estabelecendo novas ligações, eliminando ligações antigas, crescendo, vivendo. […] Estas esculturas são um exemplo de arte que está literalmente viva» http://cultura2000.min-cultura.pt/.














Alexandre Estrela - Cópia do primeiro desenho feito por um computador, 2005. Caneta s/ papel. Dimensões variáveis.

Mas na exposição outros projectos se destacam. A «Cópia do primeiro desenho feito por Computador» de Alexandre Estrela levanta outras questões. As noções de duplicação, apropriação e claro a da reprodutibilidade computorizada.












Frederica Bastide Duarte - Sospiro, 2001-2003. Vidro de Murano soprado. Dimensões variáveis.

Na mesma sala, destaco também a quantidade impressionante de recipientes em forma de alvéolos pulmonares colocados aleatoriamente no chão, que a artista Frederica Bastide Duarte já apresentou no Pavilhão Branco do Museu da Cidade de Lisboa. A noção de múltiplo está também subjacente a este projecto, facto que não é estranho à ligação da artista ao design e a outros projectos desenvolvidos neste âmbito onde o mesmo conceito é empregue.










Paula Prates -Blossom Blast, 2005. Grafite s/ papel. (6) 110 x 150 cm.

A anatomia humana é também usada como referente por Paula Prates. Mas o efeito estilizando dos seus desenhos do coração, fígado e pulmões, gritante em termos de cor e esquartejante em termos visuais, distancia-a, pela descontextualização a que os submete, da identificação referencial fácil permitida pelos alvéolos de vidro anteriores. Interessante é a selecção de cores. O verde, o azul, o rosa e o amarelo são geralmente utilizadas na ciência para definir área que requerem peculiar atenção ou na medicina para definir zonas com alguma patologia.














Susana Anágua - F=Gmm’:r2, 2005. Aço, arame, imanes. Dimensões variáveis.

Já nas esculturas de metal de Susana Anágua, também seleccionada por Leonor Nazaré para os "Sete Artistas ao Décimo Mês" integrada na mostra patente na Fundação Calouste Gulbenkian, são as questões como o equilíbrio e as atracções electromagnéticas, o elemento base. Duas esferas. A que é suspensa a partir do tecto pesa 10 quilos. É o magnetismo que a faz ficar imóvel e apenas a meio centímetro de outra esfera, de menor dimensão, presa por um fio de aço ao chão. No vídeo «Principia I», que a mesma artista exibe, pode ver-se a rotação de uma esfera que é perfurada por uma broca. O espectador é confrontado novamente com o conceito de rotação e o de fragmento de tempo sugerido pelo lopp e pela segmentação entre imagem em movimento e imagem estática.































Nuno Sousa Vieira - An Invisible Hour / Projection, 2005 . Jacto de tinta s/ lona. 293,9 x 312,7 x 78,1 cm.

«An Invisible Hour», instalação de Nuno Sousa Vieira explora as mesmas noções de rotação, neste caso da Terra, durante o período de uma hora. O conceito de tempo é também usado como material do projecto «Despertar Carlos Paredes Coimbra 1925-Lisboa 2004» de Ana João Romana e em «Melancolia» de Tânia Bandeira Duarte. Projectos de minúcia matemática, espécie de diários científicos, o primeiro regista o horário do nascimento do sol durante o período de vida de Carlos Paredes, o segundo, é um indicador melancólico da luminosidade dos dias, expressa a claro e escuro, durante as quatro estações de um ano.














Inês Rebelo - Mauna Kea CCTV (Subaru Catwalk), 2005. Jacto de tinta s/ papel. (2) 112 x 152 cm.

Por fim, outra intenção revela Inês Rebelo. As suas fotografias constituem o registo final dos mecanismos de poder e controle da sociedade actual. As relações de poder actuam como forças que disciplinam e controlam os indivíduos. Para Michel Foucault, na modernidade, à medida que mudaram as relações sócio-políticas e económicas, também as relações de poder se alteraram adequando-se às necessidades do poder dominante. Neste processo complexo, o poder autonomizou-se, prescindindo dos indivíduos. Através do aparato ideológico, burocrático ou bélico, o poder exerce-se, coagindo e fazendo com que os indivíduos se submetam. De acordo com essa concepção, o poder evolui de uma forma rude, apresenta-se hoje de um modo sofisticado e subtil. Neste conjunto de fotografias, essa subtileza é assumida por câmaras que fotografam uma mesma zona ao longo de um período registando/vigiando tudo e todos os pormenores que ocorreram nessa espaço e tempo.

Arte, Ciência e Tecnologia. I Parte

No âmbito da comemoração do Ano Mundial da Física o Museu Nacional da Ciência e da Técnica em co-produção com a Associação para o Desenvolvimento do Departamento de Física da Universidade de Coimbra apresenta uma exposição comissariada por Miguel Amado que reúne vinte e cinco artistas portugueses, alguns consagrados, outros em início de carreira. O tema base desta exposição é precisamente a confluência entre arte, ciência e tecnologia, isto é, a proximidade entre campos distintos, quer na complementaridade que por vezes os caracteriza, quer na influência recíproca que pode resultar de ambos. Daí que o título escolhido para a mostra acabe por ser de algum modo redutor, já que os fenómenos e projectos apresentados pelos artistas vão muito além da fórmula criada por Einstein. Apenas a noção de relatividade do meio expressivo poderia justificar a nomenclatura, mas tal escolha transformaria o conceito numa colagem superficial e sem sentido.














Amélia Alexandre
Observatório, 2005 . Provas digitais (48) 16 x 16 cm


A convergência entre estes campos, foi enúmeras vezes referenciada por cientistas e filósofos. Vale a pena referir o que diz Giles Deleuze nas suas Conversações quando sublinha a existência de noções inexactas e, no entanto, absolutamente rigorosas, das quais os cientistas não podem prescindir, e que pertencem ao mesmo tempo aos filósofos e aos artistas. Trata-se de um rigor que não é necessariamente científico, mas que quando alcançado pelo cientista transfigura-o também em filósofo e artista. Não se trata, segundo Deleuze, do desejo de construir uma falsa unidade que na realidade ninguém deseja, mas a de salientar o quanto o trabalho de cada um pode produzir convergências inesperadas e novas consequências. Há vários séculos que constatamos a existência de fusões e a coexistência entre Arte e Ciência. Basta pensar em alguns exemplos que levaram a Ciência a repensar a sua estrutura lógica, tornando-a mais flexível. Refira-se, por exemplo, a ambiguidade e a casualidade ou o risco de falibilidade das proposições científicas. Por outro lado, as Artes apropriaram-se de noções de precisão construtiva que se sobrepuseram à suposta espontaneidade do objecto artístico. Podemos até apontar um momento decisivo que pôs em causa o paradigma clássico não só da apreensão espacial do mundo e da natureza, mas também, no campo das artes, da geometria euclidiana: a Teoria da Relatividade e o Cubismo. Já os Gregos designavam os fenómenos artísticos de techné, de onde deriva a palavra tecnologia. Também não faziam qualquer distinção entre a arte e a técnica. Esta noção sobreviveu até ao Renascimento e o Humanismo de Leonardo da Vinci é a prova viva dessa aliança.












António Olaio
Today I discovered stereo sound, 1999 . Vídeo, cor, som, 3’ .

Música: João Taborda e António Olaio; Letra: António Olaio

As relações de proximidade entre ciência, arte e tecnologia são o sintoma de maior amplitude para o conceito de arte. O objecto foi preterido em nome de um sistema complexo que permite a interacção e manipulação num processo aberto onde o observador interage, por vezes manipulado outras, em total liberdade. A passagem do acto contemplativo ao interactivo resume esta mudança de paradigma. Noções de diversidade, complexidade, multi-mediação e recodificação são fundamentais para entendermos os novos processamentos da arte contemporânea. Indispensável é a aquisição de sistemas teóricos apropriados de outros campos para esclarecer a complexidade e os discursos dessas relações. A adopção de esquemas representativos de carácter científico constitui, por isso, para o artista uma defesa lícita e necessária de cunho inter-textual que transpostos para uma nova ordem ou caos, servirão para elaborar as suas ideias ou paradigmas intelectuais. Os artistas têm pois desenvolvido as suas obras focalizando áreas técnico-científicas como os avanços da computação, dos meios de comunicação, a biologia e a engenharia genética, o tratamento electrónico de imagens, o vídeo, os dispositivos de interacção, a web art, a criação de engenhos robóticos, etc., e os artistas reunidos neste projecto não constituem excepção.












Paulo Catrica
Física 05, 2005 . Provas cor cromogéneas . (6) 80 x 100 cm.


Segundo o comissário da exposição, o fenómeno científico e tecnológico foi entendido por estes artistas, como processo, motivo ou referente. As obras expostas compreendem diversos meios de expressão que vão da pintura à escultura, do desenho à fotografia e ao vídeo, cada uma delas estabelecendo diversos níveis de conexão com esta temática com destaque para: a fórmula E=mc2; Einstein retratado em diferentes momentos da sua vida; diferentes perspectivas fotográficas do Departamento de Física da Universidade de Coimbra; uma instalação que reflecte as noções do movimento de rotação e translação da Terra; o primeiro desenho realizado por um computador; fotografia e instalação de instrumentos médicos; observações astronómicas; efeitos do magnetismo na atracção e repulsão dos corpos; diferentes modos de representação de órgãos humanos; documentação zoológica, etc.