03 setembro 2006

Filipe Marques - Moi aussi avec toi…


Síntese:


"A arte contemporânea será tanto mais eficaz
quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade
e, portanto, quanto menos colocar no seu centro a obra original".

Walter Benjamin, 1935.

Moi aussi avec toi…

Os trabalhos apresentados por Filipe Marques na Galeria Sopro, mantêm as mesmas duas noções que o autor tem investigado e desenvolvido no último ano. A noção de Discurso-Referência que envolve a narração de processos, a demonstração do domínio técnico da linguagem pictórica enquanto processo oficinal – e a noção de Espaço-Barroco-Sincopado, isto é, da pintura enquanto alegoria do conceito, o confronto dicotómico entre o racional e o emotivo, o gesto expressivo e repetitivo, o excesso matérico em acumulação e por isso barroco. Ambas as concepções lançavam uma interrogação - a do estatuto da imagem pictórica. Na série actual, essa interrogação é extravasada pelo questionamento não apenas do estatuto mas também da sua própria validade pela inserção de imagens impressas digitalmente e pelos frames também apropriados de Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn (1966) em Swan Lake de Tchaikovsky e do mesmo bailarino em La Bayadère com o Ballet da Ópera de Paris (1992). Ambos apresentados em loop nos ecrãs plasmas instalados no espaço expositivo.

O estatuto e legitimidade da imagem transformam-se num exercício perceptivo passível de ser lido em várias dimensões. Esta nova série de trabalhos exclui o exercício correctivo que mesclava os diferentes estratos na superfície da tela da série de trabalhos apresentados anteriormente. Eles são agora individualizados de um modo estanque e o corte arqueológico é muito mais evidente. É clara a territorialidade entre a pintura e a impressão fotográfica.

A noção de simulacro ganha uma nova dimensão. Interrogam-se os limites do informalismo não com o suporte hiper-realista, que na realidade não existe, mas pela simulação da imagem real, aqui apropriada e usada como sustentáculo narrativo e base da pintura em si – a arena onde ela se lança.


(...) As imagens são apenas o leitmotif para a criação de imagens-sedução, o que Jean Baudrillard designou de crime-original. Neste acto intencional, a impressão fotográfica é usada de forma meramente instrumental. Trata-se de uma disposição que não é nem passiva, objectiva ou desinteressada, mas activa, subjectiva e motivada. A noção de apropriação inclui um acto interpretativo e o comprometimento com algo interno ao que é apropriado. Há algo do Pierre Menard e do seu Quixote nesta apropriação. (...)

O que é verdadeiramente manifesto nestas obras é a desagregação algo irónica da distinção criada pelos artistas e críticos modernistas entre arte culta e cultura popular. (...)


Não tem sentido mover qualquer tipo de questão sobre a autenticidade ou originalidade ou mesmo sobre a importância do estilo enquanto signo operatório, para usar a expressão de Rosalind Krauss. Aliás, a mesma autora afirma no seu ensaio A Originalidade da Vanguarda que as suas sucessivas reinvenções resultaram das exigências de originalidade, e que esta é apenas uma hipótese de trabalho que surge num plano de repetições e recorrências. Fotografias pirateadas? Violação dos direitos de autor? (...)


As impressões fotográficas funcionam assim como o texto que sustenta a linguagem pictórica e que só existe no movimento do discurso. É por isso que assume uma postura paradoxal, pois subentende uma noção de classificação, de taxionomia espaço-temporal (espaço da apropriação versus espaço da pintura), que encerra uma hierarquia de lugar, de espaço de ocupação.

Também por tudo isto, é plural, tem múltiplos significados. Podemos compará-la a um campo de territorialidades várias onde se afirma uma orquestração quase orgeástica de meios, desde as implicações de ordem geográfica que uma possível narrativa poderá encerrar – entre a fuga em 1961 da ex Rússia soviética e a obtenção da cidadania austríaca em 1982 – com as suas beligerantes implicações em período de guerra-fria, às implicações de género e a polémica definição da identidade sexual do bailarino e a sua exuberante afirmação. Para desfecho, como numa história trágica, com princípio meio e fim, surgem outras duas fronteiras entre territórios dicotómicos: entre o saudável e o contaminado, entre o perene e o efémero – entre uma carreira brilhante, eterna, conquistada, sofrida e aclamada e a última aparição pública em 1992 como director na estreia parisiense da La Bayadère – cujos frames são percepcionáveis em três dos ecrãs plasma como alegoria do movimento que as imagens apropriadas, linhas, manhas e bolsas de verniz coreografam –, e a morte por HIV em 1993. Mas também estão presentes outras delimitações. Entre o corpo do sujeito ou sujeitos, neste caso, e o espaço-tempo da dança e sobretudo uma sensação de omnipresença amorosa, impossível na forma carnal mas desejada platonicamente e executada nos movimentos ou pausas que se percebem em cada trabalho.


(...)

O movimento é um dos elementos centrais. E paradoxalmente assiste-se à fixação da mobilidade numa imagem estática e à conservação virtual da narrativa dos movimentos em mapas que são coreografados sobre as impressões fotográficas. Apesar de invisível traça-se uma fronteira entre a impressão e a mancha que se lhe sobrepõe. José Gil referindo-se à La Mariée de Duchamp fala de imagens-acto, isto é, de imagens que resultam de uma certa acção de que não se podem separar. O movimento existe em potência em cada uma destas obras, na realidade, na representação da realidade e no simulacro. O que as imagens podem fazer é representar outras imagens.

(...)




[Fotografias de Soraya Vasconcelos

Texto publicado na integra no Catálogo da mesma exposição pela Galeria Sopro / Projecto de arte contemporânea -
www.sopro.pt]