13 setembro 2006

O VERBO é dos Artistas / Célia Domingues

Célia Domingues nasceu em Évora em 1978. Em 1996 vai estudar Escultura para Lisboa na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e quatro anos mais tarde inicia, em simultâneo, o Curso Avançado na Maumaus – Escola de Artes Visuais. Expõe com regularidade desde 2000, onde se salientam as participações em 2005 “Just what is it...#4” no Kunstraum Innsbruck em Innsbruck, ”Inéditos” na Casa Encendida em Madrid. Em 2006 “O Manicómio Doutor Heribaldo Raboso”, comissariado pelo colectivo 21/2 no Museu da Cidade em Lisboa, “Momentos de vídeo-arte português” inserido na Photoespña no Centro Cultural Conde Duque em Madrid e o “AC#10” comissariado pela Filipa Oliveira e Miguel Amado no Espaço AC em Lisboa. Em 2004 realiza uma residência na Casa de Velazquez em Madrid e expõe individualmente pela primeira vez em Lisboa, “Uma rede de Soluções”, comissariada por Luísa Soares de Oliveira, na sala Phaldata.

Tudo pela Pátria, 2002










































Sobre o Projecto
O projecto parte de uma pesquisa em torno dos movimentos femininos criados durante a ditadura salazarista. Em 1937, fundada pela Organização das Mães pela Educação Nacional (OMEN), surge a Mocidade Portuguesa Feminina (M.P.F.), instituição que posteriormente se autonomiza e tem como objectivo a formação nacionalista das jovens. A sua meta é a educação das futuras mães da pátria, a mãe que será responsável pelo “Homem Novo”. A M.P.F. instala-se nas escolas, impondo a todas as jovens estudantes a inscrição e o respectivo pagamento de quota. Só em 1971 os centros da Mocidade Portuguesa Feminina se transformaram em “associações nacionais de juventude abertas à adesão nacional”. As militantes eram divididas por escalões de idade e entre as muitas vertentes formativas era possível encontrar o ensino das malhas, das rendas, dos bordados, do corte e da costura. Existiam também diversas publicações destinadas ao público feminino, entre as quais se destaca a “Lavores e Trabalhos Manuais”, dirigida a jovens estudantes, particularmente do ensino liceal. Aqui era possível encontrar mapas de lavores femininos e textos sobre os bordados tradicionais. Nesta instalação, a autora copia o desenho original de um tapete de Arraiolos, bordado pela sua tia na aldeia de São Gregório, em pleno Alentejo, e cria uma peça em esponja, onde reinterpreta o conceito do tradicional ‘Arraiolos’.

Título: “Tudo pela Pátria”
Ano: 2002
Dimensões: Tapete 0,02mX3mX4m, fotografias 0,2mX0,3m, mapas 0,8mX1m, área de instalação variável
Materiais: Tinta de água, esponja, fotografia, papel


nº4 interior izquierdo, 2002







































Sobre o Projecto
Um trabalho centrado na casa onde a autora viveu durante a sua estada em Madrid, no âmbito do programa ‘Erasmus’. Esta é uma casa de uma mulher já idosa, espaço que incorpora o que no momento envolvia a pesquisa da autora: as relações entre os movimentos femininos de Portugal e Espanha. As imagens apresentadas são, em grande parte, tomadas de posições a que um comum visitante não poderia aceder. À medida que o espaço é mostrado em diapositivos, uma gravação áudio conta o que se ficciona sobre a vida da dona desta casa. Esta ficção é inspirada em relatos (escritos ou orais) de mulheres portuguesas e espanholas.

Tìtulo: “Nº4 Interior Izquierdo”
Ano: 2002
Dimensões: Área de instalação variável
Materiais: Diapositivos e gravação áudio


S/t, 2002






























Sobre o Projecto
Uma viagem que começa em Lisboa rumo ao sul do País, Évora, local onde a família da autora se reúne para mais um almoço. Neste simples encontro de família, as pessoas organizam-se por sexo e idade. Toda esta acção acompanha um outro acontecimento apresentado em texto, no qual é descrito um episódio histórico que teve lugar no Parque Eduardo VII, em Lisboa: a primeira tentativa de revolução feminina do pós 25 de Abril. Nesta tentativa fracassada, três mulheres – as protagonistas – tentaram queimar vassouras, panos do pó e soutiens, símbolos de opressão feminina a que queriam pôr fim. Com muitos homens presentes no local, a manifestação terminou sem que fossem cumpridos os objectivos: perseguidas pelos espectadores masculinos que gritavam “Dispam-nas, dispam-nas”, às mulheres nada mais restou além da fuga.

Título: “Sem Título”
Ano: 2002
Materiais: DVD

Código de seabra, 2003


























Sobre o Projecto
O Código de Seabra era o Código Civil Napoleónico de 1867, que na sua legislação discriminava a mulher em “razão do sexo” e “em razão da família”. Em 1910 sofreu pequenas alterações, benéficas para a mulher, mas na entrada do novo Código Civil, em 1939, tudo o que tinha sido suprimido, regressa. Segundo o Código de Seabra, a esposa devia prestar obediência ao marido. A separação do casal só era possível no caso de “adultério da mulher”. Contudo, para o homem, só em caso de “adultério do marido com escândalo público” seria admitida essa hipótese. Este decreto foi abolido pela Lei do Divórcio, em 1910, mas em 1935, por forte imposição de deputados católicos, o divórcio deixa de ser possível por mútuo acordo e volta a entrar em vigor a lei segundo a qual o divórcio era concedido apenas em função do adultério (no caso do homem só com escândalo público). O retrocesso imposto pelo regime salazarista reintroduziu no Código Civil de 1939 o humilhante poder concebido ao marido de requerer judicialmente a mulher, o que implicava que se a mulher fugisse de casa, o marido podia exigir junto da polícia que esta lhe fosse entregue/restituída, como um objecto. Esta lei só foi abolida em 1967. Nesta instalação, são apresentadas quatro projecções de slides, cada uma delas com uma sequência de imagens. Na primeira, a autora dá a ver uma série de fotografias do seu álbum pessoal, imagens que ilustram momentos vividos em família, na antiga casa da sua bisavó, numa pequena aldeia do Alentejo, bem como o casamento dos seus pais, realizado em Évora. Na projecção seguinte, a autora apresenta fotografias da mesma casa da sua bisavó, mas agora captada no presente (2003 é o ano da realização dessas imagens). A terceira projecção apresenta fotografias do casamento de uma amiga, em 2002. Por último – o único espaço exterior que se apresenta em toda a instalação – fotografias do local onde se encontra a casa da bisavó da autora: São Gregório, uma pequena aldeia no meio do Alentejo, quase deserta, com características semelhantes a grande parte das aldeias desta região.

Título: “Código de Seabra”
Ano: 2003
Dimensões: Área de instalação variável
Materiais: Slides e gravação áudio


Local de encontro, 2004



























Sobre o Projecto
“Local de Encontro” surge no contexto do Euro 2004 e está inserido no projecto colectivo “Selecção Nacional”, no qual uma bola de futebol é o ponto de partida para todos os artistas convidados. A partir da ‘sua' bola de futebol, a autora concebeu um tabuleiro de xadrez onde as equipas são constituídas por figuras de açúcar. O tabuleiro é o ‘local de encontro’ onde o jogo é disputado e o ‘rei’ e a ‘rainha’ dirigem cada uma das equipas.

Titulo: “Local de encontro”
Ano: 2004
Dimensões: Variáveis
Materiais: Bola de futebol, tintas spray, bonecos de açúcar


Ama de Casa, 2004





























Sobre o Projecto
Durante a ditadura salazarista e franquista nasceram em Portugal e Espanha organizações femininas que tinham como função educar as mulheres, as futuras mães da pátria. Dirigidas pelas respectivas elites femininas, enquadradas no contexto político que se vivia em cada um dos países, existe entre as organizações portuguesas e espanholas uma série de pontos em comum. Como exemplo, na informação dirigida ao público feminino, em Portugal, encontram-se revistas como “Modas e Bordados” e “Secção Feminina”, assim como em Espanha se podia encontrar “Y”, “Medina”, “Teresa”, entre outras. Entre muitas receitas culinárias ou conselhos para o lar e para a família, é veiculada informação sobre como reutilizar objectos em desuso ou que por algum motivo pudessem existir em excesso no lar. Reutilizar pode fazer com que um vestido velho se transforme numa nova saia ou que as simples molas da roupa ganhem outras funcionalidades como, por exemplo, prender os cortinados da sala. Com base na reutilização dos objectos, surge a ideia de realizar um tapete em caramelos, doces tradicionalmente adquiridos por portugueses nas suas viagens a Espanha, a partir de um pequeno pano de renda feito pela mãe da autora.

Título: “Ama de Casa”
Ano: 2004
Dimensões: 2mX2m
Materiais: Caramelos, cordão e arame


Uma rede de soluções, 2004


























Sobre o projecto
«Um projecto desenvolvido a partir da empresa Phaldata, uma empresa de sistemas de comunicação dividida por vários sectores, desde a oficina, onde se arranjam computadores, passando pelo armazém, onde se encontram as peças que constroem todo o sistema informático, até ao gabinete do director, no primeiro andar. Em “Uma rede de soluções” são fotografados alguns desses espaços – uns aparentemente mais interessantes do que outros – assim como os lugares que as secretárias e os executivos ocupam. No final, a autora optou por centrar a sua atenção no armazém da Phaldata, lugar à partida inacessível a quem está de visita, mas que acaba por revelar-se fundamental na dinâmica da empresa.»

Título: “Uma rede de soluções”
Ano: 2004
Dimensões: 0.53mX0.80m e 0.46mx0.70m
Material: Fotografia
“Uma rede de Soluções”foi comissariada por Luísa Soares de Oliveira, na sala Phaldata.


Campo mártires da pátria 2005


























Sobre o Projecto
Uma casa apenas com os vestígios do que em tempos foi a vivência desse espaço. Uma família desconhecida, como desconhecidas são também as ‘estórias’ de quem ali habitou. A partir do acesso ao que restou dessas existências – o espaço em si, os objectos, os livros, as revistas, os jornais – a autora cria ‘a sua ideia’ da família que pode um dia ter habitado esta casa. Entre um número infinito de jornais, destaca-se uma série de revistas femininas, como “Crónica Feminina” (publicação em tempos considerada fundamental para a educação das mulheres), e livros como “O Vício Conjugal”, onde se fala sobre as relações sexuais que não têm como objectivo procriar, entendidas ali como relações tão criminosas quanto o aborto em si mesmo. Construir a identidade de uma família a partir do espaço por ela habitado foi a principal motivação da autora.

Título: “Campo Mártires da Pátria, nº 100, 1º Dto”
Ano: 2005
Dimensões: Variáveis
Material: Diapositivos

S/t 2006



























Sobre o projecto
«Uma questão portuguesa que podia ser uma preocupação de todos e não apenas do sexo feminino, desde sempre penalizado por lei, o aborto continua ainda hoje a ser motivo para condenar mulheres e intervenientes responsáveis em Portugal. Nesta situação nunca houve nenhum tipo de evolução ao longo dos tempos em Portugal. “O aborto causas e soluções” enuncia que entre 1912 e 1923 o numero de condenações não chegou a dez, embora tenha depois aumentado, em 1923 -1930 houve no total vinte condenações. A legislação para o aborto continuou a condenar as mulheres durante o Estado Novo, quem levasse uma mulher grávida a abortar com ou sem o seu consentimento, seria punido com pena de prisão entre dois a oito anos, esta pena era aplicada ao médico, cirurgião ou farmacêutico e á mulher que abortasse voluntariamente, contudo, em Portugal nos ultimos anos, mais especificamente desde 2002, com o julgamento de uma enfermeira e dezassete mulheres na Maia, retomou-se um ritual existente á algumas décadas atrás. Apesar de nos encontrarmos no séc. XXI, Portugal continua a condenar mulheres, enfermeiras e médicos que se envolvem na realização de abortos, resultantes da consciência individual. Curiosamente a lei que vigora em Portugal e que permite a realização do aborto mediante algumas excepções, é praticamente idêntica à que vigora em Espanha. As excepções são: em caso de violação, em caso de perigo de vida para a mulher, má formação do feto e se estiver em risco a saúde mental da mulher. Leis semelhantes, pressupostos idênticos, nos jornais portugueses anunciam-se as clinicas que realizam abortos em Espanha, porque ai o risco de serem julgadas e acusadas é menor. Contudo as mulheres espanholas, não correm esse risco e deslocam-se a Inglaterra. Portugal e Espanha foram durante muitas décadas regimes ditatoriais, “aprenderam” desde tenra idade o que são os valore patriarcais. Como se deve comportar uma menina e um menino, qual a posição do homem e da mulher no casamento, a função do pai e da mãe dentro da família. Tudo isto leva a que em ambos ao países permaneçam uma serie de resquícios resultantes desse período, o aborto, pode ser um dos muitos que encontramos em Portugal e Espanha. Acreditamos que em nome do bem da nação devemos preservar a vida, porque é realmente um bem precioso, mas à que ter em conta as condições em que se concebe uma vida, será coerente trazer ao mundo uma criança para a dar para adopção? Será coerente trazer uma criança ao mundo sem condições para a criar? Será coerente trazer ao mundo uma criança em que a mãe não se sente preparada para o ser? Estas são algumas das questões que me coloco, não querendo definir o que é correcto ou incorrecto, bem ou mal, mas sim o que é de domínio publico ou privado com que direito julgamos e condenamos alguém por ter livre arbítrio sobre o seu corpo? Quantas mulheres estariam presas por o terem praticado?
Contudo no decorrer do projecto um dos principais pontos que me interessou desenvolver na instalação é a relação que se estabelece entre o espaço privado e o espaço publico. Pois as mulheres que passam pela experiência de realizar um aborto clandestino em Portugal veem muitas vezes a sua privadicade invadida por uma moral conduzida pela religião. Que define o que é o certo ou o errado, o bem e o mal preservando e cultivando que o livre arbitrio sobre o corpo da mulher grávida pode ser criminoso qd esta decide que não pode ter uma criança seja por que motivo for. A instalação é dividida em duas partes; uma delas o que se supõe ser um espaço exterior á casa, um poço que é construido com os sacos (ou sacas) usados para construir trincheiras, ou para proteger as casas das cheias. Ao lado deste poço existe um balde construido com enemas, objectos utilizados para realizar abortos clandestinos pelas intituladas “tecedeiras de anjos”, como a que vemos no filme “Vera Drake” realizado por Mike Leigh. Na outra parte do espaço existe um tapete, estamos num espaço interior, um espaço privado onde tb temos acesso ao espaço privado do ac, a cozinha. E aqui, ao lado da cozinha existe um tapete, no que se supõe ser a sala, feito em tesouras. Um tapete que normalmente é usado para dar conforto ao lar aqui é usado (quase) como uma “armadilha”.

Materiais: Enemas, tesouras, sacos e areia.
Dimensões: Variáveis


S/t 2006














































[todas as fotofrafias e textos foram cedidas pela artista # Célia Domingues]

03 setembro 2006

Filipe Marques - Moi aussi avec toi…


Síntese:


"A arte contemporânea será tanto mais eficaz
quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade
e, portanto, quanto menos colocar no seu centro a obra original".

Walter Benjamin, 1935.

Moi aussi avec toi…

Os trabalhos apresentados por Filipe Marques na Galeria Sopro, mantêm as mesmas duas noções que o autor tem investigado e desenvolvido no último ano. A noção de Discurso-Referência que envolve a narração de processos, a demonstração do domínio técnico da linguagem pictórica enquanto processo oficinal – e a noção de Espaço-Barroco-Sincopado, isto é, da pintura enquanto alegoria do conceito, o confronto dicotómico entre o racional e o emotivo, o gesto expressivo e repetitivo, o excesso matérico em acumulação e por isso barroco. Ambas as concepções lançavam uma interrogação - a do estatuto da imagem pictórica. Na série actual, essa interrogação é extravasada pelo questionamento não apenas do estatuto mas também da sua própria validade pela inserção de imagens impressas digitalmente e pelos frames também apropriados de Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn (1966) em Swan Lake de Tchaikovsky e do mesmo bailarino em La Bayadère com o Ballet da Ópera de Paris (1992). Ambos apresentados em loop nos ecrãs plasmas instalados no espaço expositivo.

O estatuto e legitimidade da imagem transformam-se num exercício perceptivo passível de ser lido em várias dimensões. Esta nova série de trabalhos exclui o exercício correctivo que mesclava os diferentes estratos na superfície da tela da série de trabalhos apresentados anteriormente. Eles são agora individualizados de um modo estanque e o corte arqueológico é muito mais evidente. É clara a territorialidade entre a pintura e a impressão fotográfica.

A noção de simulacro ganha uma nova dimensão. Interrogam-se os limites do informalismo não com o suporte hiper-realista, que na realidade não existe, mas pela simulação da imagem real, aqui apropriada e usada como sustentáculo narrativo e base da pintura em si – a arena onde ela se lança.


(...) As imagens são apenas o leitmotif para a criação de imagens-sedução, o que Jean Baudrillard designou de crime-original. Neste acto intencional, a impressão fotográfica é usada de forma meramente instrumental. Trata-se de uma disposição que não é nem passiva, objectiva ou desinteressada, mas activa, subjectiva e motivada. A noção de apropriação inclui um acto interpretativo e o comprometimento com algo interno ao que é apropriado. Há algo do Pierre Menard e do seu Quixote nesta apropriação. (...)

O que é verdadeiramente manifesto nestas obras é a desagregação algo irónica da distinção criada pelos artistas e críticos modernistas entre arte culta e cultura popular. (...)


Não tem sentido mover qualquer tipo de questão sobre a autenticidade ou originalidade ou mesmo sobre a importância do estilo enquanto signo operatório, para usar a expressão de Rosalind Krauss. Aliás, a mesma autora afirma no seu ensaio A Originalidade da Vanguarda que as suas sucessivas reinvenções resultaram das exigências de originalidade, e que esta é apenas uma hipótese de trabalho que surge num plano de repetições e recorrências. Fotografias pirateadas? Violação dos direitos de autor? (...)


As impressões fotográficas funcionam assim como o texto que sustenta a linguagem pictórica e que só existe no movimento do discurso. É por isso que assume uma postura paradoxal, pois subentende uma noção de classificação, de taxionomia espaço-temporal (espaço da apropriação versus espaço da pintura), que encerra uma hierarquia de lugar, de espaço de ocupação.

Também por tudo isto, é plural, tem múltiplos significados. Podemos compará-la a um campo de territorialidades várias onde se afirma uma orquestração quase orgeástica de meios, desde as implicações de ordem geográfica que uma possível narrativa poderá encerrar – entre a fuga em 1961 da ex Rússia soviética e a obtenção da cidadania austríaca em 1982 – com as suas beligerantes implicações em período de guerra-fria, às implicações de género e a polémica definição da identidade sexual do bailarino e a sua exuberante afirmação. Para desfecho, como numa história trágica, com princípio meio e fim, surgem outras duas fronteiras entre territórios dicotómicos: entre o saudável e o contaminado, entre o perene e o efémero – entre uma carreira brilhante, eterna, conquistada, sofrida e aclamada e a última aparição pública em 1992 como director na estreia parisiense da La Bayadère – cujos frames são percepcionáveis em três dos ecrãs plasma como alegoria do movimento que as imagens apropriadas, linhas, manhas e bolsas de verniz coreografam –, e a morte por HIV em 1993. Mas também estão presentes outras delimitações. Entre o corpo do sujeito ou sujeitos, neste caso, e o espaço-tempo da dança e sobretudo uma sensação de omnipresença amorosa, impossível na forma carnal mas desejada platonicamente e executada nos movimentos ou pausas que se percebem em cada trabalho.


(...)

O movimento é um dos elementos centrais. E paradoxalmente assiste-se à fixação da mobilidade numa imagem estática e à conservação virtual da narrativa dos movimentos em mapas que são coreografados sobre as impressões fotográficas. Apesar de invisível traça-se uma fronteira entre a impressão e a mancha que se lhe sobrepõe. José Gil referindo-se à La Mariée de Duchamp fala de imagens-acto, isto é, de imagens que resultam de uma certa acção de que não se podem separar. O movimento existe em potência em cada uma destas obras, na realidade, na representação da realidade e no simulacro. O que as imagens podem fazer é representar outras imagens.

(...)




[Fotografias de Soraya Vasconcelos

Texto publicado na integra no Catálogo da mesma exposição pela Galeria Sopro / Projecto de arte contemporânea -
www.sopro.pt]