30 outubro 2006

Mário Vitória - “SMVSEVM” na MCO (Porto)

O desenho, instrumento base deste projecto, gerador do imaginário que caracteriza as pinturas e gravuras de Mário Vitória, é da ordem do metafísico e está muito próximo da narrativa dos contos populares – na referência constante à tradição, usos e costumes – da sátira político-social ou mesmo da caricatura.

As referências são múltiplas, mas os Caprichos de Goya são talvez os mais próximos. Atingir o mais profundo âmago humano, a sua ontologia, a essência primitiva, naquilo que torna o Homem indistinto do Ser animal, parece ser o principal objectivo do artista. A representação de animais domésticos, que ora se exprimem em emoções e gestos humanos, ora na sua condição de bestas sob a dominação humana, o significado dos gestos ou a expressividade dos olhares, levam o espectador ao universo imaginário da fábula, das metáforas e das alegorias. Nas fábulas os personagens são geralmente animais que reflectem uma lição moral. Aqui a mensagem tem também um fundo moralista e é sobretudo o testemunho de experiências autobiográficas e de uma imagética consequência de uma pesquisa pessoal.

A vitória da debilidade sobre a força, da benevolência sobre a esperteza, o eterno confronto entre o bem e o mal, tudo mascarado por uma subtil violência, pela hipocrisia, presunção ou mesquinhez, transformam estes desenhos em drama irónico.

Várias noções são aqui analisadas. O homem, as coisas, os animais são antíteses das suas próprias propriedades. Enganam pela sua aparente ingenuidade. O espaço que ocupam na composição dita uma hierarquia de possibilidades interpretativas e são parte integrante de uma cosmogonia cujos elementos revelam um profundo sincretismo visual. O significado, esse, apenas, em parte, poderá ser descoberto. Enquanto representação, este imaginário, revela um significado que está para além do que é aparente.

Quer os desenhos-pintura, quer as gravuras, descrevem micro-narrativas fruto da sobreposição de diferentes contextos, episódios e situações, cujo carácter aleatório se revela um lúdico jogo de percepções.

As histórias descritas graficamente representam um mundo real e ao mesmo tempo repleto de fingimentos. Os vários protagonistas são inseridos na composição, que funciona como uma espécie de proscénio, obedecendo a uma ordem sequencial de acontecimentos. O bestiário humano espelha simultaneamente humanidade e crueldade. É nesse espaço fragmentado que tudo se manifesta: desconfiança, ambiguidade, perplexidade, a verdade da realidade e da ficção.

Uma noção de espaço pouco profundo delimitado por um cenário indefinido onde pessoas, animais e objectos se justapõem, e no qual estabelecem redes simbólicas de relações, define a estrutura base das composições. O mesmo espírito preside nas gravuras, mas a sua reduzida dimensão e uma aparente simplificação narrativa elimina esse suporte, transformando-o num vácuo onde o representado parece errar espontaneamente. A centralidade compositiva dos desenhos-pintura é aqui substituída por uma dispersão do figurado.

O facto de não terem sido atribuídos quaisquer títulos a estes desenhos vem reforçar a ideia de uma autonomia interpretativa que qualquer nomeação destruiria e que a dimensão narrativa das imagens, por si só, potencia.

A inexistência de linhas que conduzam a uma leitura do enunciado levam o observador, a partir dos fragmentos figurativos, a delinear os contornos dum enredo que pode estar ou não próximo das intenções do artista. No entanto, a perfusão de elementos, aparentemente desconexos e dispersos na composição constitui um importante ponto de referência para a construção de possíveis analogias. É a composição que rege toda a panóplia de afinidades que os desenhos suscitam.

Tratam-se de narrativas, mas nelas não domina qualquer sequência linear, pelo contrário, a sensação de que o autor faz permanentes avanços e recuos, conduz-nos do fim para o princípio e deste para o final da história. Os retrocessos e avanços são permanentes e jamais consequentes. Em sentido figurado, as notas de rodapé, os complementos directos e indirectos fazem parte de um discurso que se pretende plural e nunca enumerado.


Outros Desenhos
Série

Um Universo de Vácuo Inquietante
[todas as fotofrafias foram cedidas pelo artista # Mário Vitória]